terça-feira, 30 de outubro de 2007

Todos os dias quanto acordo...

...e saio de casa, a cena é a mesma - o engarrafamento em direção ao Rebouças está próximo ou, por vezes, à porta do meu prédio. Imagem que estraga a cena maior, da Lagoa num dia de sol ou chuva, não importa, sempre linda.

Mas me acostumei com isso - sigo naquele trecho de pouco mais de três quilômetros até o túnel ouvindo música, durante não menos que vinte minutos de trânsito lento.

Hoje, não tinha carro na porta de casa. Não tinha trânsito até o túnel, que alcancei de uma esticada só, em menos de um minuto. Incrível.

Todos os dias quando vou pra Bonsucesso, vejo um fluxo enormemente maior na direção contrária. No Rebouças. Na Linha Vermelha. Na Avenida Brasil. No Aterro. Na Perimetral. Não importa o caminho - na Linha Amarela, agora, tem até faixa reversível até dez da manhã pra desafogar o trânsito na direção da Zona Sul e Centro.

Pois bem. Aí o quê a estúpida da prefeitura faz quando decide rebrir um dos túneis do Rebouças? Bota esse túnel com mão pra ZN das 5 às 15, e depois, com mão invertida, das 16 em diante. Tudo, claro, pra atender quem mora na Zona Sul.

Hoje a cidade terá mais um dia como ontem, com Avenida Brasil parada, Linha Vermelha sentido Centro parada... ah, mas na primeira página do O Globo, claro, a foto e a manchete são do Santa Bárbara "sofrendo as consequências, engarrafado o dia inteiro".

Salve a burguesia, salve o César Maia, salve a ignorância humana.



Esse absurdo me lembra, claro, o "Caos Aéreo" - expressão adotada por tvs e jornais pra vender notícia, que é o objetivo de todo veículo de comunicação. Durante meses tivemos que conviver com páginas e mais páginas de "denúncias", minutos e mais minutos de declarações na tv, de autoridades, de autoritários, de gente comum. Ôpa, "gente comum"? Será mesmo que quem anda de avião nesse país é gente comum?

O caos aéreo fez a burguesia esperar horas em aeroportos, passar pelo absurdo de ter que dormir no chão por vezes - meu Deus, coitada da burguesia!

Agora eu pergunto: o tal caos aéreo passou? Os aviões não continuam subindo e descendo com atraso? O Sindacta não continua com os mesmos radares e computadores obsoletos? Os controladores de vôo não seguem ganhando um salário de fome em vista à sua responsabilidade?

Então, porra, por que ninguém fala mais disso?

Porque é notícia velha, não vende mais, cansou. Vamos agora falar do túnel, do engarrafamento no Santa Bárbara, da nova campanha do O Globo sobre a violência no trânsito - ôpa, essa já acabou também, mal vi passar.



Serviço de utilidade privada do 021: Sheila Mello, 29 anos, é a capa da Sexy deste mês, edição que comemora os 15 anos da revista. Pago pau mesmo. Sheila Mello é top 5 all time.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Bosta de Elite


Foi o Guilherme quem me chamou a atenção para o título da matéria de capa da Veja desta semana:

"(...) O FILME TROPA DE ELITE É O MAIOR SUCESSO DO CINEMA BRASILEIRO PORQUE TRATA BANDIDO COMO BANDIDO E MOSTRA USUÁRIOS DE DROGAS COMO SÓCIOS DOS TRAFICANTES."

Puta que pariu, foi a primeira coisa que pensei, e pela milésima vez pelo mesmo motivo. Mais um idiota escrevendo sobre um ponto de vista míope, preconceituoso, americanizado, burguês, burro...

Esse vai ser um texto repleto de palavrões, por isso eu vou logo pedindo desculpas e avisando que estômagos mais sensíveis podem se sentir ofendidos com o que virá a seguir.

Avisei.

Quem associa a violência no Rio de Janeiro ao tráfico é burro. Burro, cego e surdo pra cidade em que vive. Porque tráfico existe em qualquer lugar do mundo onde haja drogas. E drogas, como sabemos, existem em qualquer lugar do mundo. Então tráfico também. Em tão alta escala quanto no Rio ou até mais. Raramente com a mesma violência e crueldade. Mas sempre na mesma oferta. Só mais caro. Paris, Roma, NY, Vegas, Sydney, Lisboa, Buenos Aires. Qualquer um pode comprar droga nesses lugares.

O tráfico não gera em todos os lugares onde é presente a mesma violência que gera aqui, necessariamente. Ele é uma imposição de uma política absurda implementada pelos EUA no início do século passado para reprimir entorpecentes, principalmente a maconha e o ópio, que acabou sendo adotada globalmente. Foi quando assinou-se a sentença de morte de uma série de variedade de plantas para referendar-se a produção em escala global de bebidas alcóolicas, que matam muito mais do que qualquer droga ou guerra jamais matou.

(Não me lembro de caso recente de acidente de trânsito com morte por conta de um motorista chapado. Mas o bêbado do caminhão outro dia matou um monte na estrada, a 120 por hora. Ah, mas cerveja, cachaça, conhaque, nada disso é droga... É um animal quem pensa assim. Porque o almofadinha certinho e careta e politicamente correto que sai do barzinho da moda no Leblon bêbado dirigindo é muito mais filho-da-puta do que o que compra droga no morro.)

Eu tô cansado de viver num lugar onde é moralmente condenável comprar algo que é proibido plantar, enquanto é a coisa mais comum do mundo ver quase todo mundo que eu conheço, em algum momento, completamente bêbado e, por isso mesmo, sujeito a fazer todo tipo de merda - até dirigir.

Ou alguém me dá algum outro motivo consistente além do trânsito para proibirem alguém de
alterar a mente com qualquer tipo de droga? Que mal ou violência um chapado ou doidão é capaz de fazer que um bêbado não seja?

Sim, eu posso beber e dirigir, posso fumar tabaco até definhar, mas não posso plantar maconha, porque o Tio Sam assim quis na década de 20 do século passado. Basicamente, é esse o paradigma atual.

Não são as drogas - ou o tráfico - que originam a violência no Rio. Porque aqui, o tráfico de drogas é só uma manifestação da violência que, no caso de nossa socieade, existe não por existirem tráfico ou drogas, mas sim por existir uma desigualdade revoltante que se faz presente na praia, na praça, no estádio, na ZS, na ZN, em todo lugar. Pra qualquer lado que se olhe, tem um rico tirando onda com um pobre - mesmo que essa seja a última coisa que a pobre alma rica queira fazer. Mas faz.

É essa desigualdade que revolta o moleque de 12 anos que vai levantar pipa pro trafico por 200 por semana. Aí ele desce e compra um nike, uma bermuda da moda e vai dar um rolé em Ipanema, se achando menos deslocado do que antes. Como eu vi hoje, no 10 - um grupo de cinco ou seis meninas que seguramente eram do Cantagalo ou Pavão sendo olhadas de banda pela maioria patricinha que frequenta aquele trecho da praia. Mal sabe o tal moleque que o Nike e a bermuda farão pouca diferença, dependendo do seu tom da sua pele.

Aí esse moleque chega na praia e vê iPod, Blackberry, menininha de quinze anos dando um dois, playboy de Tag Heuer no pulso, pittboy de Oakley na cara... e todo mundo filmando ele, que é preto. Ou mulato, ou pardo ou, simplesmente, fora do padrão dourado do local. "Pobre tem pinta de pobre". Onde eu ouvi isso? Adivinhem...

Tivesse eu nascido favelado, nem gosto de pensar em como seria lá pelos meus quinze anos de idade num lugar com gente que pensa assim.

E aí eu pergunto - é a porra da droga que faz o moleque virar bandido? Ou é a revolta que ele sente por viver fora daquilo, na realidade fodida de um morro, de um Complexo? Meus amigos, dêem graças a Deus por todo esse contingente estar agora em seus morros, esperando pra vender, botar na gaveta, descer pro baile e fechar o feriado santo sem tiro se possível. Porque o traficante quer as mesmas coisas que eu e você - da diversão na noite de sexta ao dinheiro no bolso pra pagar o leite das crianças. Porque traficante também tem filho.

E garanto - trafica porque não conseguiu nada digno pra fazer. Do mesmo jeito que cada camelô que vendeu uma cópia pirata do filme. Como disse o Mano Brown rispidamente no Roda Viva, "cê acha mesmo que o irmão iria tá lá no centro todo dia correndo da polícia se tivesse trabalho digno pra fazer?"

Só que não tem. Aí vai vender droga. Ou vai puxar carro. Vai assaltar banco, apartamento na Lagoa. Vai formar quadrilha pra sequestrar empresário da Barra que anda em carro de quinhentos mil reais. Quer saber? Eu acho mais é que quem tem a coragem e a falta de noção de andar num carro assim no nosso país tem mais é que tomar tiro na cara. Cara-de-pau.
É como passear num campo de refugiados no Máli comendo um sundae da Chaika. Afronta. Confronto.

No delicado equilíbrio de forças da nossa cidade, o confronto está cada vez mais presente. Um dia, o aparente estado de controle das coisas cai. Aí fodeu.

E, claro, vai tem gente dizendo que é por causa das drogas. Do mesmo jeito que, provavelmente, alguém vai ler isso aqui e achar que eu tô defendendo traficante ou tráfico. Porra, seu tonto, eles são consequência do que eu e você ajudamos a sustentar, uma sociedade fodida, partida, cada vez mais bipolar.

Porra, um dia a casa vai cair porque a tal bosta de elite continua comendo pizza de 50 reais, comprando vestido de 300, tênis de 500, carro de 60, 70, 100, 200... enquanto paga setentinha pra faxineira passar o dia inteiro em suas casas limpando... Não houvesse drogas ou tráfico, e a situação seria a mesma, pois a desigualdade e o ódio seriam os mesmos - sim, porque cada vez mais o pobre odeio o rico no Rio de Janeiro, e com motivo.

Pelo mesmo motivo que eu nem me arrisco a ver o filme de novo num cinema, sujeito a ouvir algum absurdo proferido por um sem-noção de merda qualquer perto de mim. Porque eu comprei um DVD pirata em Bonsucesso, botei quatro reais no bolso de um fodido que não conseguiu emprego decente mas que não tá roubando, tá correndo atrás do dele. Por mais chavão de moleque-de-bala-em-ônibus que isso possa ser. E cá entre nós, honestamente. Quem não usar soft pirata que atire a primeira pedra nele e em mim.

É pena que filme tão bom tenha tocado na questão das drogas, principalmente a maconha, através do ponto de vista pessoal do André Batista, co-autor do livro e fonte de inspiração pro Matias. Foi ele quem estudou na PUC e encarou aquelas situações. Que acontecem igualzinho, sem tirar nem pôr, na Unisuam, em Bonsucesso, na Gama Filho, em Pilares, no CIEP da Lagoa ou no de Vaz Lobo, no colégio mais tradicional ou mais bordel. Porque a venda e o consumo, ao contrário do que e elite míope pensa, são hoje intrínsecas à toda e qualquer socieadade, rica ou pobre, carioca ou européia. Fuma-se mais maconha no subúrbio, cheira-se mais coca na Zona Sul. É a única diferença mais perceptível. O consumo de drogas vai do ricaço aqui do lado ao trocador de ônibus que mora na Mangueira e rala pra caralho pra sustentar a família.

Não é a droga que fode nossa sociedade. São a desigualdade e a hipocrisia, que andam de mãos dadas no calçadão de Ipanema ou Leblon. Mesmo calçadão onde o rico desfila, o moleque do Nike se sente falsamente inserido... e onde o surfistinha compra a droga que quiser com o hippie das cangas.

Mas a culpa de toda essa merda é do maconheiro, claro.