quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Gonzo

São duas e meia da manhã. Já faz duas semanas que estou em Las Vegas. O trabalho, motivo de minha vinda, acabou há três dias. Tempo que deveria ter sido usado para sair daqui para qualquer lugar, de preferência LA. Mas há um certo magnetismo aqui. Decidi ficar e continuar com a rotina de excessos.

São duas e trinta e um da manhã de minha última noite em Las Vegas. Sem arrependimentos. Já é hora de ir. Meu vôo é daqui a pouco menos de dez horas. Decidi me embriagar ao máximo e dormir o mínimo possível, para, qualquer deus me ouça, apagar no avião e só acordar em casa.

Olho pro relógio. Nesses sessenta segundos, um redneck vomitou na mesa de pôker ao lado, fui abordado por uma prostituta bêbada e pedi minha décima segunda dose de Jack. Não posso deixar de pensar que com esses 120 dólares eu poderia ter comprado seis garrafas na volta. Agradeço ao deus da roleta por ter me ensinado a me desprender ainda mais do dinheiro, maldito dinheiro.

Estou no cassino que fica a poucos passos do hotel. Salvação e perdição. Foi sempre ali a última parada antes da cama nessas duas semanas. Claro, quando eu consegui achar a cama depois. Comparado aos outros cassinos de Vegas, esse se mostra único; em vez do clima pesado e decadente, uma atmosfera apenas decadente, graças ao público jovem que vem ao lugar. Não que se embebedem menos ou sejam menos exemplo de tudo de errado com a humanidade. Mas era o cassino mais agradável que tinha conhecido até então. E eu ainda podia passar a noite ali ouvindo rock'n'roll. Dentro de meu estado de solidão compulsório, já tinha passado noites piores.

Mas ainda eram duas e trinta e três da manhã.

“Preciso mijar”. Péssimo pensamento. Significava levantar-me do bar central, onde estava confortavelmente papeando com o Jack, passar por uma multidão de caipiras, roletas, gringos, cervejas, putas e seguranças até o longo e amplo corredor que levava aos banheiros. Cumpro a missão com certa desenvoltura; àquela hora, estava tão bêbado que mal sentía meus pés tocarem o chão. Fui Fred Astaire até a cabine, conhecida de outras noites de vômito e contagem de dólares para mais uma rodada na roleta. Senti um certo alívio em olhar pela última vez para a foto do Jim Morrison na parede. “Talvez seja a hora de desistir.” Saio do banheiro bem melhor depois de botar para fora parte de minha conversa com Jack. “Preciso tirar esse gosto de vômito da boca”, penso. E decido voltar pro bar.

Refaço mentalmente o caminho de volta e saio da segurança de minha cabine para a inebriante realidade do cassino lotado. Gente, gente, gente de todo tipo. Mas eu acabo reparando numa turma que vem longe, em minha direção; quatro imbecis fortes pra caralho, linebackers, acompanhados de três Britneys. Mas eu não estou em condição de fixar atenção em nada. Minha mente vai da guitarra na parede às pernas de uma gostosa, passando pela tabacaria e pela loja de souvenirs. Por isso não percebo quando ele se aproxima.

* * *

Meu nome é John. Sou segurança do Hard Rock Cassino, em Las Vegas. São quase três da manhã e eu conto os minutos para a troca de turno. Noite tranqüila, sem maiores incidentes. Geralmente, bêbados são nosso maior problema. “Um bêbado em um cassino é sempre problema – e todos estão sempre bêbados”.

Um deles sai do banheiro. Já o tinha visto nas noites anteriores. Sempre acompanhado de outros três caras, mas há pelo menos duas ou três noites, vinha sozinho. Usava uma camisa chamativa, com o número 10 às costas, e nesta noite parecia mais bêbado que nunca. Ele pára assim que sai do banheiro. Depois começa a andar daquela forma inconfundível, quando se é preciso prestar atenção em cada passo.

Depois de alguns deles, sem mais nem menos, um jovem extremamente forte vai em direção a ele. O pega com toda força, pelos ombros, e o arremessa na parede. Ato contínuo, um tremendo arroto na cara do camisa 10, seguido de risadas – do imbecil, dos imbecis que o acompanhavam e uma ou outra pessoa que viu a cena. A maioria, como eu, reage com incredulidade e reprovação. “É o tipo de brincadeira escrota que me faz suar meu terno de vez em quando”, penso. Mas não hoje. Ele está bêbado demais para reagir. Fica ali, na parede, parado, emparedado. Como que imaginando se aquilo realmente tinha acontecido. O grupo, com quatro trogloditas, segue seu caminho sem dar maior importância à vítima da brincadeira.

Mas, para minha surpresa, o bêbado começa a dar um passo trôpego atrás do outro em direção ao grupo. “Shit! Eu não acredito que esse idiota vai tirar satisfação com quatro caras daquele tamanho!”.


* * *

Boto a mão no ombro dele, pelas costas, já gritando, “Ô seu viado!”

O soco sai forte, com o braço errado. Graças ao deus dos burros e ao deus dos ombros deslocados, pega no ouvido do desgraçado, que deve ter tido todo tempo do mundo para se esquivar, dada minha condição alcóolica. Com isso ele dobra o joelho – você já tomou um soco no ouvido, mesmo de raspão? - e eu vôo para frente, impulsionado pelo meu braço, que passou reto e chegou primeiro ao chão.

Não tive tempo nem de me levantar. Dois macacos de terno caem sobre mim, com toda força; um deles me imobiliza e o outro, juro por Zico, me suspende e me bota de pé pelo cinto. Mas eu nem chego a botar realmente os pés no chão. Sou arrastado até uma porta de serviço e sumo pelos subterrâneos do cassino.

* * *

“O senhor espere aqui”.

Sou deixado em uma sala pequena, onde há um sofá e uma câmera no teto, bem no canto. Imagino quantas pessoas devem trabalhar na sala de monitoração do cassino, tantas são as câmeras por todo lugar. Umas trezentas no salão de jogo, facilmente. Naquela sala, aquela parecia um olho divino a me observar. Quem estaria do outro lado? O que vai acontecer comigo agora, porra? Caralho, aquele imbecil arrotou mesmo na minha cara? CARALHO, meu vôo... marco a hora no relógio.

São cinqüenta e três minutos de espera. Não vale à pena contar aqui o que se passou por minha cabeça nesse tempo. Iria assustá-lo demais.

Entram então três homens. Um deles, mais velho, com um terno de melhor corte, é o que fica. Seu inglês tem um sotaque que não consigo identificar, mas ele é calmo, cordial e fala devagar.

Me diz que a norma do cassino é botar quem briga pra rua. Solução simples e rápida. Mas que, no meu caso, teria que ser diferente. Os quatro Warren Saps estavam lá fora me esperando. Pra minha sorte, um segurança tinha visto tudo e, pelo visto, tirado o meu da reta, provavelmente depois de rirem muito da cena gravada pelas câmeras de segurança. O homem me pergunta onde estou hospedado e me oferece uma carona para o hotel, para onde volto de limusine.

“Ainda bem. Acho que eu não estava mesmo em condições de caminhar”.


Esse texto é uma singela reportagem/homenagem ao Mestre Hunter S. Thompson, que teve sua biografia definitiva lançada no mês passado. RIP, HST.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Fragmentos de pensamentos... como uma conexão que cai... um neurônio que cai... ou, como diria a propaganda, "Keep walking."

Depois de quase vinte dias eu volto a ter acesso à internet em casa, graças ao incrível avanço tecnológico das empresas que prestam serviços de comunicação no país... nesse tempo, um rei mandou um ditador se calar, as chuvas voltaram a mostrar a fragilidade da cidade, o oficial do Bope que enforcou o sequestrador do 174 fez piada com o fato, um turista morreu atropelado depois de um assalto... e todo mundo continua solto... graças a Deus existe Doors pra esquecer que isso tudo é real... de quinta e domingo tem mais um Festival Hutúz, desta vez com shows no Circo Voador, com destaque pro MV Bill no sábado - alguém um dia ainda vai me explicar porque o Thaíde nunca vem. O detalhe é o seguinte - a entrada vai custar 10 pratas. Louvável, de acordo, possível porque quem organiza precisa pagar. E paga. Com ingresso a 10 pratas. Alguém sabe quem ta trazendo o Police pro Rio?...

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

"Meio certo não existe, tru, o ditado é comum."

Há dez anos era lançado Sobrevivendo no Inferno, obra dos Racionais MC's que neste tempo se transformou num marco da música brasileira.

E não me refiro à qualidade do disco, dos meus preferidos, e "eleito" mês passado pela edição brasileira da Rolling Stone um dos 100 melhores da história da nossa música (em décimo quarto lugar).

Sobrevivendo foi um marco porque subverteu uma ordem que, até hoje, dez anos depois, tantos insistem em afirmar inquebrável. Mano Brown, Ice Blue, Edy Rock e KL Jay quebraram.

A própria Rolling Stone erra ao afirmar 1998 como a data de lançamento. Comprei o CD em dezembro de 1997, num camelô na Uruguaiana. Só três meses mais tarde conseguiria achar o disco quente, toscamente distribuído pela Cosa Nostra, selo dos caras. Produção independente, distribuição independente, quatro homens independentes que resolveram bancar sua posição.

Sobrevivendo no Inferno vendeu mais de 500 mil cópias originais. Estima-se que tenham sido entre um milhão e um milhão e meio de cópias piratas.

No mês passado, no Roda Viva, da Cultura, Brown defendeu a pirataria com seu ponto de vista simples e reto:

"Mano, eu não posso condenar o cara que vende meu CD pirata. Até porque, vários parceiros sem emprego fazem isso pra sobreviver. É aquela história batida, o cara podia tá roubando, fazendo mil coisas erradas, mas tá ali, tentando trabalhar, montando a barraca dele no centro ainda na madruga, tendo que correr da polícia quando ela chega querendo o arrego ou pegar toda a mercadoria. Você acha mesmo que se ele tivesse uma opção digna de emprego ele estaria nessa situação, tendo que correr de polícia?"

Enquanto isso, artistas consagrados, com gordos contratos com grandes gravadoras, reclamam do prejuízo que a pirataria lhes causa.

Esses artistas, via de regra, moram em casas grandes, com piscina, viajam o mundo, comem bem, têm carro com preço de apê e não pagam quase nada aonde quer que vão.

Que raiva.

Como pode, num país fodido como o nosso, o cara que ganha salário mínimo pagar 36 reais num CD? Ou 17 numa sessão de cinema? Se quiser levar mulher e dois filhos, mais de cinquenta pratas - cerca de quatorze por cento do seu ganho mensal. Isso, pra ver um filminho p-o-r m-ê-s. E, mesmo assim, ele não vai, claro. Livro? Um bom livro não se acha por menos de 30 reais. Mesmo drama.

A opção dele, claro, é pagar 4 reais no CD, 5 no DVD (agora antes mesmo do filme chegar ao cinema) e continuar sem ler, porque a pirataria no setor editorial ainda não pegou.

Tá errado o trabalhador consumir cultura assim, pagando pelo pirata? Tá errado o pirata ao privar o artista consagrado de mais uma colher de caviar? O que seria certo, o pirata ir preso e o trabalhador continuar tendo como opção apenas a Globo?

Caralho, não é possível que as pessoas não entendam. Cultura, nesse país, há tempos e tempos e tempos virou coisa pra rico, pros poucos ricos. O povo, pra ter acesso, deve agradecer pela pirataria. Que, nesse caso, faz papel de Robin Hood e também do próprio povo, garantindo seu sustento.

E não me venham falar de máfia de camelôs, porque essa máfia controla a venda de brinquedos e outras muambas que entram no país sem pagar imposto. Aqui eu tô falando de pirataria de cultura - ou o malfadado direito à propriedade intelectual.

O que me lembra a frase dos Racionais lá de cima. Não existe meio certo. O cara que critica a pirataria muitas vezes baixa música da internet - pirataria. Compra soft na banca do camelô - pirataria. "Ah, mas o Office original custa um aburdo!"

O mesmo absurdo que passaram a custar os ingressos pra show depois que a burguesia deu um tiro no pé com a questão da meia entrada - o mesmo branquinho que bate no peito pra dizer que só viu Tropa de Elite no cinema, usa carteirinha falsa ou de curso de ioga pra pagar meia entrada pro The Police, show mais caro dos últimos tempos.

Até o Maracanã, hoje, me dá a impressão de não ser mais pro povo. Olho pros lados, na arquibancada, e vejo uma gente COMPLETAMENTE diferente da que eu vía quando tinha 15 anos.

A pirataria, no Brasil, é bendito meio pra que o povo tenha acesso à cultura. Não leva artista algum à falência, como estão aí os Racionais pra provar, dez anos depois do disco mais pirateado de todos os tempos.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

O que você vai ser quando você crescer...

Ainda me lembro da primeira vez que fui sozinho ao Maracanã, tinha doze anos. Naquele tempo, tempo bom, sonhava com uma carreira de jornalista esportivo e invejava profundamente aqueles que, como eu, estavam sempre lá - mas sem pagar e vendo o jogo da então tribuna de imprensa.

Ainda me lembro da primeira carteirinha da ACERJ que recebi, logo depois de ser contratado e realizar o sonho da carreira. "Uau!", pensei. "Agora mesmo é que não saio mais do Maracanã".

Passaram-se nove anos até que eu usasse a tal carteirinha - já tinha uma coleção pendurada na porta do armário de casa quando pela primeira vez usei do direito de entrar sem pagar, mesmo não sendo pra trabalhar. O fato é que nunca gostei, nunca me senti à vontade. Em primeiro lugar, não dá pra entrar como imprensa de bermuda. Manto sagrado, claro, nem pensar. E ir ao Maraca sem vestir o manto é como ir à praia e não dar um mergulho.

Depois dessa primeira vez, que foi no ano passado, acompanhado de um pintor e um pedreiro conhecidos, mas que foram pra arquibancada, só voltei a usar a carteira no Flamengo x Asco, quando me aborreci tremendamente ao ter minha passagem pra arquibancada negada pelo simples fato de estar usando uma camisa do Flamengo por baixo da Hering branca. "Ordens do Pedro Costa". "Vocês vêm pra cá, não pagam, querem ir pra arquibancada... veio pra cá, é pra trabalhar."

Ainda tive que aturar essas e outras em tom de deboche. Logo quem, logo eu, olha só, que usei a porra da carteira, sem ser a trabalho, duas vezes em treze anos.

Por isso, ontem, depois do programa sair do ar, saí eu do Maracanã, onde estava trabalhando desde quatro da tarde, vesti o manto, saquei o ingresso e fui pra arquibancada encontrar meu irmão.

E aí, no meio do caminho, tinha a PM.

E branquinho ainda quer fazer Copa do Mundo aqui.

Em mais um show de incompetência, despreparo e, pra mim, total racalque, policiais montados em cavalos "organizavam" as filas de entrada, uma de cada lado. De tempos em tempos, travavam a fila. Tumulto. Empurra-empurra. Mulher passando mal. Cecetete pra cima de torcedor. Suor. Pés mal tocando o chão. O corpo sendo levado pela massa. Uma loira gostosa dando mole. Por sorte, cair no chão era improvável, diante do aperto.

Meia hora quase nesse sufoco. Até a alma ficou empapada de suor. E, já do lado de dentro, a visão da má vontade - gente pra caralho pra entrar ainda e a polícia, em vez de manter a ordem, dava o tom da desordem, transformando o que poderia ser uma entrada tranquila, sem as tais filas, numa tragédia em potencial. Porque pra alguém ser pisoteado ou ter um enfarto no meio daquela situação, não custava nada. Vi pelo menos meia dúzia de pessoas saindo das mega-filas passando mal.

Nosso problema é achar que aqui é a Suíça.

Mas aqui, definitivamente, não é. Aqui o cara sobe no assento pra ver o jogo. Quebra o assento, joga na torcida adversária, lá embaixo. Aqui, num jogo como o de ontem, setenta pessoas vão parar no atendimento médico, algumas pisoteadas em tumultos já dentro do Maracanã. Aqui, meus camaradas, não é a Suíça. E aqui, a polícia não é bem uma polícia.



Lá dentro, de novo, aquele fenômeno chamado Flamengo. Muito mais que um time, muito mais que um clube - uma nação. Só quem é sabe o que é.