quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Nem todo policial é um otário fardado, nem todo malandro é um mal necessário.

Há oito anos, quando comecei a conhecer um pouco melhor Nichteroy, fui logo avisado sobre os perigos do Cavalão. "Favela braba, igual às piores do Rio."

Voltei a ouvir sobre o Cavalão nesse fim de semana, na sensacional reportagem da Regina Casé pro Fantástico. Ela mostrou como é possível, com boa vontade, trabalho e respeito, resolver um dos maiores problemas da nossa cidade.

O último registro de homicídio no Cavalão data de 2003. Desde então, morador algum ouviu sequer um tiro. E ninguém precisa de autorização do tráfico para entrar. A paz subiu o morro um ano antes, em 2002, quando foi instalado, bem no meio da favela, o Grupamento de Policiamento de Áreas Especiais (Gpae). Um "quartel" onde as crianças entram e saem, jogam bola, pegam frutas nas árvores. Tática de auto-proteção que viria a ser também um dos alicerces de uma nova relação entre a comunidade e a Polícia Militar. Como mostrou a Regina, no Cavalão homens, mulheres e crianças sabem os nomes dos policiais. Os respeitam. E os têm como gente de confiança.

Nem sempre foi assim, claro. Durante mais de vinte anos, o Cavalão foi o morro mais violento de Nichteroy, com uma rotina de tiroteios e mortes praticada pelo movimento, que hoje não existe mais de forma organizada no morro.

"Estaria mentindo se dissesse que ninguém vende ou compra droga aqui", diz o comandante do Gpae, o capitão Romeu. "Mas não existe mais o tráfico enquanto dono do morro, ditando ordens e executando pessoas".

Lembro de novo: já são quatro anos sem um único tiro ou homicídio no Cavalão.

E o mais incrível é que a instalação do Gpae no morro foi uma resposta a uma denúncia de violência policial - em setembro de 2002, oito policiais foram presos pela tortura e morte do ajudante de pedreiro Francisco Aldir de Souza, que tinha 18 anos. E, claro, não era traficante. Dois ônibus foram queimados pela comunidade em protesto. O tráfico mandou fechar o comércio no morro. Mas aquela seria a última vez.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Gonzo

São duas e meia da manhã. Já faz duas semanas que estou em Las Vegas. O trabalho, motivo de minha vinda, acabou há três dias. Tempo que deveria ter sido usado para sair daqui para qualquer lugar, de preferência LA. Mas há um certo magnetismo aqui. Decidi ficar e continuar com a rotina de excessos.

São duas e trinta e um da manhã de minha última noite em Las Vegas. Sem arrependimentos. Já é hora de ir. Meu vôo é daqui a pouco menos de dez horas. Decidi me embriagar ao máximo e dormir o mínimo possível, para, qualquer deus me ouça, apagar no avião e só acordar em casa.

Olho pro relógio. Nesses sessenta segundos, um redneck vomitou na mesa de pôker ao lado, fui abordado por uma prostituta bêbada e pedi minha décima segunda dose de Jack. Não posso deixar de pensar que com esses 120 dólares eu poderia ter comprado seis garrafas na volta. Agradeço ao deus da roleta por ter me ensinado a me desprender ainda mais do dinheiro, maldito dinheiro.

Estou no cassino que fica a poucos passos do hotel. Salvação e perdição. Foi sempre ali a última parada antes da cama nessas duas semanas. Claro, quando eu consegui achar a cama depois. Comparado aos outros cassinos de Vegas, esse se mostra único; em vez do clima pesado e decadente, uma atmosfera apenas decadente, graças ao público jovem que vem ao lugar. Não que se embebedem menos ou sejam menos exemplo de tudo de errado com a humanidade. Mas era o cassino mais agradável que tinha conhecido até então. E eu ainda podia passar a noite ali ouvindo rock'n'roll. Dentro de meu estado de solidão compulsório, já tinha passado noites piores.

Mas ainda eram duas e trinta e três da manhã.

“Preciso mijar”. Péssimo pensamento. Significava levantar-me do bar central, onde estava confortavelmente papeando com o Jack, passar por uma multidão de caipiras, roletas, gringos, cervejas, putas e seguranças até o longo e amplo corredor que levava aos banheiros. Cumpro a missão com certa desenvoltura; àquela hora, estava tão bêbado que mal sentía meus pés tocarem o chão. Fui Fred Astaire até a cabine, conhecida de outras noites de vômito e contagem de dólares para mais uma rodada na roleta. Senti um certo alívio em olhar pela última vez para a foto do Jim Morrison na parede. “Talvez seja a hora de desistir.” Saio do banheiro bem melhor depois de botar para fora parte de minha conversa com Jack. “Preciso tirar esse gosto de vômito da boca”, penso. E decido voltar pro bar.

Refaço mentalmente o caminho de volta e saio da segurança de minha cabine para a inebriante realidade do cassino lotado. Gente, gente, gente de todo tipo. Mas eu acabo reparando numa turma que vem longe, em minha direção; quatro imbecis fortes pra caralho, linebackers, acompanhados de três Britneys. Mas eu não estou em condição de fixar atenção em nada. Minha mente vai da guitarra na parede às pernas de uma gostosa, passando pela tabacaria e pela loja de souvenirs. Por isso não percebo quando ele se aproxima.

* * *

Meu nome é John. Sou segurança do Hard Rock Cassino, em Las Vegas. São quase três da manhã e eu conto os minutos para a troca de turno. Noite tranqüila, sem maiores incidentes. Geralmente, bêbados são nosso maior problema. “Um bêbado em um cassino é sempre problema – e todos estão sempre bêbados”.

Um deles sai do banheiro. Já o tinha visto nas noites anteriores. Sempre acompanhado de outros três caras, mas há pelo menos duas ou três noites, vinha sozinho. Usava uma camisa chamativa, com o número 10 às costas, e nesta noite parecia mais bêbado que nunca. Ele pára assim que sai do banheiro. Depois começa a andar daquela forma inconfundível, quando se é preciso prestar atenção em cada passo.

Depois de alguns deles, sem mais nem menos, um jovem extremamente forte vai em direção a ele. O pega com toda força, pelos ombros, e o arremessa na parede. Ato contínuo, um tremendo arroto na cara do camisa 10, seguido de risadas – do imbecil, dos imbecis que o acompanhavam e uma ou outra pessoa que viu a cena. A maioria, como eu, reage com incredulidade e reprovação. “É o tipo de brincadeira escrota que me faz suar meu terno de vez em quando”, penso. Mas não hoje. Ele está bêbado demais para reagir. Fica ali, na parede, parado, emparedado. Como que imaginando se aquilo realmente tinha acontecido. O grupo, com quatro trogloditas, segue seu caminho sem dar maior importância à vítima da brincadeira.

Mas, para minha surpresa, o bêbado começa a dar um passo trôpego atrás do outro em direção ao grupo. “Shit! Eu não acredito que esse idiota vai tirar satisfação com quatro caras daquele tamanho!”.


* * *

Boto a mão no ombro dele, pelas costas, já gritando, “Ô seu viado!”

O soco sai forte, com o braço errado. Graças ao deus dos burros e ao deus dos ombros deslocados, pega no ouvido do desgraçado, que deve ter tido todo tempo do mundo para se esquivar, dada minha condição alcóolica. Com isso ele dobra o joelho – você já tomou um soco no ouvido, mesmo de raspão? - e eu vôo para frente, impulsionado pelo meu braço, que passou reto e chegou primeiro ao chão.

Não tive tempo nem de me levantar. Dois macacos de terno caem sobre mim, com toda força; um deles me imobiliza e o outro, juro por Zico, me suspende e me bota de pé pelo cinto. Mas eu nem chego a botar realmente os pés no chão. Sou arrastado até uma porta de serviço e sumo pelos subterrâneos do cassino.

* * *

“O senhor espere aqui”.

Sou deixado em uma sala pequena, onde há um sofá e uma câmera no teto, bem no canto. Imagino quantas pessoas devem trabalhar na sala de monitoração do cassino, tantas são as câmeras por todo lugar. Umas trezentas no salão de jogo, facilmente. Naquela sala, aquela parecia um olho divino a me observar. Quem estaria do outro lado? O que vai acontecer comigo agora, porra? Caralho, aquele imbecil arrotou mesmo na minha cara? CARALHO, meu vôo... marco a hora no relógio.

São cinqüenta e três minutos de espera. Não vale à pena contar aqui o que se passou por minha cabeça nesse tempo. Iria assustá-lo demais.

Entram então três homens. Um deles, mais velho, com um terno de melhor corte, é o que fica. Seu inglês tem um sotaque que não consigo identificar, mas ele é calmo, cordial e fala devagar.

Me diz que a norma do cassino é botar quem briga pra rua. Solução simples e rápida. Mas que, no meu caso, teria que ser diferente. Os quatro Warren Saps estavam lá fora me esperando. Pra minha sorte, um segurança tinha visto tudo e, pelo visto, tirado o meu da reta, provavelmente depois de rirem muito da cena gravada pelas câmeras de segurança. O homem me pergunta onde estou hospedado e me oferece uma carona para o hotel, para onde volto de limusine.

“Ainda bem. Acho que eu não estava mesmo em condições de caminhar”.


Esse texto é uma singela reportagem/homenagem ao Mestre Hunter S. Thompson, que teve sua biografia definitiva lançada no mês passado. RIP, HST.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Fragmentos de pensamentos... como uma conexão que cai... um neurônio que cai... ou, como diria a propaganda, "Keep walking."

Depois de quase vinte dias eu volto a ter acesso à internet em casa, graças ao incrível avanço tecnológico das empresas que prestam serviços de comunicação no país... nesse tempo, um rei mandou um ditador se calar, as chuvas voltaram a mostrar a fragilidade da cidade, o oficial do Bope que enforcou o sequestrador do 174 fez piada com o fato, um turista morreu atropelado depois de um assalto... e todo mundo continua solto... graças a Deus existe Doors pra esquecer que isso tudo é real... de quinta e domingo tem mais um Festival Hutúz, desta vez com shows no Circo Voador, com destaque pro MV Bill no sábado - alguém um dia ainda vai me explicar porque o Thaíde nunca vem. O detalhe é o seguinte - a entrada vai custar 10 pratas. Louvável, de acordo, possível porque quem organiza precisa pagar. E paga. Com ingresso a 10 pratas. Alguém sabe quem ta trazendo o Police pro Rio?...

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

"Meio certo não existe, tru, o ditado é comum."

Há dez anos era lançado Sobrevivendo no Inferno, obra dos Racionais MC's que neste tempo se transformou num marco da música brasileira.

E não me refiro à qualidade do disco, dos meus preferidos, e "eleito" mês passado pela edição brasileira da Rolling Stone um dos 100 melhores da história da nossa música (em décimo quarto lugar).

Sobrevivendo foi um marco porque subverteu uma ordem que, até hoje, dez anos depois, tantos insistem em afirmar inquebrável. Mano Brown, Ice Blue, Edy Rock e KL Jay quebraram.

A própria Rolling Stone erra ao afirmar 1998 como a data de lançamento. Comprei o CD em dezembro de 1997, num camelô na Uruguaiana. Só três meses mais tarde conseguiria achar o disco quente, toscamente distribuído pela Cosa Nostra, selo dos caras. Produção independente, distribuição independente, quatro homens independentes que resolveram bancar sua posição.

Sobrevivendo no Inferno vendeu mais de 500 mil cópias originais. Estima-se que tenham sido entre um milhão e um milhão e meio de cópias piratas.

No mês passado, no Roda Viva, da Cultura, Brown defendeu a pirataria com seu ponto de vista simples e reto:

"Mano, eu não posso condenar o cara que vende meu CD pirata. Até porque, vários parceiros sem emprego fazem isso pra sobreviver. É aquela história batida, o cara podia tá roubando, fazendo mil coisas erradas, mas tá ali, tentando trabalhar, montando a barraca dele no centro ainda na madruga, tendo que correr da polícia quando ela chega querendo o arrego ou pegar toda a mercadoria. Você acha mesmo que se ele tivesse uma opção digna de emprego ele estaria nessa situação, tendo que correr de polícia?"

Enquanto isso, artistas consagrados, com gordos contratos com grandes gravadoras, reclamam do prejuízo que a pirataria lhes causa.

Esses artistas, via de regra, moram em casas grandes, com piscina, viajam o mundo, comem bem, têm carro com preço de apê e não pagam quase nada aonde quer que vão.

Que raiva.

Como pode, num país fodido como o nosso, o cara que ganha salário mínimo pagar 36 reais num CD? Ou 17 numa sessão de cinema? Se quiser levar mulher e dois filhos, mais de cinquenta pratas - cerca de quatorze por cento do seu ganho mensal. Isso, pra ver um filminho p-o-r m-ê-s. E, mesmo assim, ele não vai, claro. Livro? Um bom livro não se acha por menos de 30 reais. Mesmo drama.

A opção dele, claro, é pagar 4 reais no CD, 5 no DVD (agora antes mesmo do filme chegar ao cinema) e continuar sem ler, porque a pirataria no setor editorial ainda não pegou.

Tá errado o trabalhador consumir cultura assim, pagando pelo pirata? Tá errado o pirata ao privar o artista consagrado de mais uma colher de caviar? O que seria certo, o pirata ir preso e o trabalhador continuar tendo como opção apenas a Globo?

Caralho, não é possível que as pessoas não entendam. Cultura, nesse país, há tempos e tempos e tempos virou coisa pra rico, pros poucos ricos. O povo, pra ter acesso, deve agradecer pela pirataria. Que, nesse caso, faz papel de Robin Hood e também do próprio povo, garantindo seu sustento.

E não me venham falar de máfia de camelôs, porque essa máfia controla a venda de brinquedos e outras muambas que entram no país sem pagar imposto. Aqui eu tô falando de pirataria de cultura - ou o malfadado direito à propriedade intelectual.

O que me lembra a frase dos Racionais lá de cima. Não existe meio certo. O cara que critica a pirataria muitas vezes baixa música da internet - pirataria. Compra soft na banca do camelô - pirataria. "Ah, mas o Office original custa um aburdo!"

O mesmo absurdo que passaram a custar os ingressos pra show depois que a burguesia deu um tiro no pé com a questão da meia entrada - o mesmo branquinho que bate no peito pra dizer que só viu Tropa de Elite no cinema, usa carteirinha falsa ou de curso de ioga pra pagar meia entrada pro The Police, show mais caro dos últimos tempos.

Até o Maracanã, hoje, me dá a impressão de não ser mais pro povo. Olho pros lados, na arquibancada, e vejo uma gente COMPLETAMENTE diferente da que eu vía quando tinha 15 anos.

A pirataria, no Brasil, é bendito meio pra que o povo tenha acesso à cultura. Não leva artista algum à falência, como estão aí os Racionais pra provar, dez anos depois do disco mais pirateado de todos os tempos.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

O que você vai ser quando você crescer...

Ainda me lembro da primeira vez que fui sozinho ao Maracanã, tinha doze anos. Naquele tempo, tempo bom, sonhava com uma carreira de jornalista esportivo e invejava profundamente aqueles que, como eu, estavam sempre lá - mas sem pagar e vendo o jogo da então tribuna de imprensa.

Ainda me lembro da primeira carteirinha da ACERJ que recebi, logo depois de ser contratado e realizar o sonho da carreira. "Uau!", pensei. "Agora mesmo é que não saio mais do Maracanã".

Passaram-se nove anos até que eu usasse a tal carteirinha - já tinha uma coleção pendurada na porta do armário de casa quando pela primeira vez usei do direito de entrar sem pagar, mesmo não sendo pra trabalhar. O fato é que nunca gostei, nunca me senti à vontade. Em primeiro lugar, não dá pra entrar como imprensa de bermuda. Manto sagrado, claro, nem pensar. E ir ao Maraca sem vestir o manto é como ir à praia e não dar um mergulho.

Depois dessa primeira vez, que foi no ano passado, acompanhado de um pintor e um pedreiro conhecidos, mas que foram pra arquibancada, só voltei a usar a carteira no Flamengo x Asco, quando me aborreci tremendamente ao ter minha passagem pra arquibancada negada pelo simples fato de estar usando uma camisa do Flamengo por baixo da Hering branca. "Ordens do Pedro Costa". "Vocês vêm pra cá, não pagam, querem ir pra arquibancada... veio pra cá, é pra trabalhar."

Ainda tive que aturar essas e outras em tom de deboche. Logo quem, logo eu, olha só, que usei a porra da carteira, sem ser a trabalho, duas vezes em treze anos.

Por isso, ontem, depois do programa sair do ar, saí eu do Maracanã, onde estava trabalhando desde quatro da tarde, vesti o manto, saquei o ingresso e fui pra arquibancada encontrar meu irmão.

E aí, no meio do caminho, tinha a PM.

E branquinho ainda quer fazer Copa do Mundo aqui.

Em mais um show de incompetência, despreparo e, pra mim, total racalque, policiais montados em cavalos "organizavam" as filas de entrada, uma de cada lado. De tempos em tempos, travavam a fila. Tumulto. Empurra-empurra. Mulher passando mal. Cecetete pra cima de torcedor. Suor. Pés mal tocando o chão. O corpo sendo levado pela massa. Uma loira gostosa dando mole. Por sorte, cair no chão era improvável, diante do aperto.

Meia hora quase nesse sufoco. Até a alma ficou empapada de suor. E, já do lado de dentro, a visão da má vontade - gente pra caralho pra entrar ainda e a polícia, em vez de manter a ordem, dava o tom da desordem, transformando o que poderia ser uma entrada tranquila, sem as tais filas, numa tragédia em potencial. Porque pra alguém ser pisoteado ou ter um enfarto no meio daquela situação, não custava nada. Vi pelo menos meia dúzia de pessoas saindo das mega-filas passando mal.

Nosso problema é achar que aqui é a Suíça.

Mas aqui, definitivamente, não é. Aqui o cara sobe no assento pra ver o jogo. Quebra o assento, joga na torcida adversária, lá embaixo. Aqui, num jogo como o de ontem, setenta pessoas vão parar no atendimento médico, algumas pisoteadas em tumultos já dentro do Maracanã. Aqui, meus camaradas, não é a Suíça. E aqui, a polícia não é bem uma polícia.



Lá dentro, de novo, aquele fenômeno chamado Flamengo. Muito mais que um time, muito mais que um clube - uma nação. Só quem é sabe o que é.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Todos os dias quanto acordo...

...e saio de casa, a cena é a mesma - o engarrafamento em direção ao Rebouças está próximo ou, por vezes, à porta do meu prédio. Imagem que estraga a cena maior, da Lagoa num dia de sol ou chuva, não importa, sempre linda.

Mas me acostumei com isso - sigo naquele trecho de pouco mais de três quilômetros até o túnel ouvindo música, durante não menos que vinte minutos de trânsito lento.

Hoje, não tinha carro na porta de casa. Não tinha trânsito até o túnel, que alcancei de uma esticada só, em menos de um minuto. Incrível.

Todos os dias quando vou pra Bonsucesso, vejo um fluxo enormemente maior na direção contrária. No Rebouças. Na Linha Vermelha. Na Avenida Brasil. No Aterro. Na Perimetral. Não importa o caminho - na Linha Amarela, agora, tem até faixa reversível até dez da manhã pra desafogar o trânsito na direção da Zona Sul e Centro.

Pois bem. Aí o quê a estúpida da prefeitura faz quando decide rebrir um dos túneis do Rebouças? Bota esse túnel com mão pra ZN das 5 às 15, e depois, com mão invertida, das 16 em diante. Tudo, claro, pra atender quem mora na Zona Sul.

Hoje a cidade terá mais um dia como ontem, com Avenida Brasil parada, Linha Vermelha sentido Centro parada... ah, mas na primeira página do O Globo, claro, a foto e a manchete são do Santa Bárbara "sofrendo as consequências, engarrafado o dia inteiro".

Salve a burguesia, salve o César Maia, salve a ignorância humana.



Esse absurdo me lembra, claro, o "Caos Aéreo" - expressão adotada por tvs e jornais pra vender notícia, que é o objetivo de todo veículo de comunicação. Durante meses tivemos que conviver com páginas e mais páginas de "denúncias", minutos e mais minutos de declarações na tv, de autoridades, de autoritários, de gente comum. Ôpa, "gente comum"? Será mesmo que quem anda de avião nesse país é gente comum?

O caos aéreo fez a burguesia esperar horas em aeroportos, passar pelo absurdo de ter que dormir no chão por vezes - meu Deus, coitada da burguesia!

Agora eu pergunto: o tal caos aéreo passou? Os aviões não continuam subindo e descendo com atraso? O Sindacta não continua com os mesmos radares e computadores obsoletos? Os controladores de vôo não seguem ganhando um salário de fome em vista à sua responsabilidade?

Então, porra, por que ninguém fala mais disso?

Porque é notícia velha, não vende mais, cansou. Vamos agora falar do túnel, do engarrafamento no Santa Bárbara, da nova campanha do O Globo sobre a violência no trânsito - ôpa, essa já acabou também, mal vi passar.



Serviço de utilidade privada do 021: Sheila Mello, 29 anos, é a capa da Sexy deste mês, edição que comemora os 15 anos da revista. Pago pau mesmo. Sheila Mello é top 5 all time.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Bosta de Elite


Foi o Guilherme quem me chamou a atenção para o título da matéria de capa da Veja desta semana:

"(...) O FILME TROPA DE ELITE É O MAIOR SUCESSO DO CINEMA BRASILEIRO PORQUE TRATA BANDIDO COMO BANDIDO E MOSTRA USUÁRIOS DE DROGAS COMO SÓCIOS DOS TRAFICANTES."

Puta que pariu, foi a primeira coisa que pensei, e pela milésima vez pelo mesmo motivo. Mais um idiota escrevendo sobre um ponto de vista míope, preconceituoso, americanizado, burguês, burro...

Esse vai ser um texto repleto de palavrões, por isso eu vou logo pedindo desculpas e avisando que estômagos mais sensíveis podem se sentir ofendidos com o que virá a seguir.

Avisei.

Quem associa a violência no Rio de Janeiro ao tráfico é burro. Burro, cego e surdo pra cidade em que vive. Porque tráfico existe em qualquer lugar do mundo onde haja drogas. E drogas, como sabemos, existem em qualquer lugar do mundo. Então tráfico também. Em tão alta escala quanto no Rio ou até mais. Raramente com a mesma violência e crueldade. Mas sempre na mesma oferta. Só mais caro. Paris, Roma, NY, Vegas, Sydney, Lisboa, Buenos Aires. Qualquer um pode comprar droga nesses lugares.

O tráfico não gera em todos os lugares onde é presente a mesma violência que gera aqui, necessariamente. Ele é uma imposição de uma política absurda implementada pelos EUA no início do século passado para reprimir entorpecentes, principalmente a maconha e o ópio, que acabou sendo adotada globalmente. Foi quando assinou-se a sentença de morte de uma série de variedade de plantas para referendar-se a produção em escala global de bebidas alcóolicas, que matam muito mais do que qualquer droga ou guerra jamais matou.

(Não me lembro de caso recente de acidente de trânsito com morte por conta de um motorista chapado. Mas o bêbado do caminhão outro dia matou um monte na estrada, a 120 por hora. Ah, mas cerveja, cachaça, conhaque, nada disso é droga... É um animal quem pensa assim. Porque o almofadinha certinho e careta e politicamente correto que sai do barzinho da moda no Leblon bêbado dirigindo é muito mais filho-da-puta do que o que compra droga no morro.)

Eu tô cansado de viver num lugar onde é moralmente condenável comprar algo que é proibido plantar, enquanto é a coisa mais comum do mundo ver quase todo mundo que eu conheço, em algum momento, completamente bêbado e, por isso mesmo, sujeito a fazer todo tipo de merda - até dirigir.

Ou alguém me dá algum outro motivo consistente além do trânsito para proibirem alguém de
alterar a mente com qualquer tipo de droga? Que mal ou violência um chapado ou doidão é capaz de fazer que um bêbado não seja?

Sim, eu posso beber e dirigir, posso fumar tabaco até definhar, mas não posso plantar maconha, porque o Tio Sam assim quis na década de 20 do século passado. Basicamente, é esse o paradigma atual.

Não são as drogas - ou o tráfico - que originam a violência no Rio. Porque aqui, o tráfico de drogas é só uma manifestação da violência que, no caso de nossa socieade, existe não por existirem tráfico ou drogas, mas sim por existir uma desigualdade revoltante que se faz presente na praia, na praça, no estádio, na ZS, na ZN, em todo lugar. Pra qualquer lado que se olhe, tem um rico tirando onda com um pobre - mesmo que essa seja a última coisa que a pobre alma rica queira fazer. Mas faz.

É essa desigualdade que revolta o moleque de 12 anos que vai levantar pipa pro trafico por 200 por semana. Aí ele desce e compra um nike, uma bermuda da moda e vai dar um rolé em Ipanema, se achando menos deslocado do que antes. Como eu vi hoje, no 10 - um grupo de cinco ou seis meninas que seguramente eram do Cantagalo ou Pavão sendo olhadas de banda pela maioria patricinha que frequenta aquele trecho da praia. Mal sabe o tal moleque que o Nike e a bermuda farão pouca diferença, dependendo do seu tom da sua pele.

Aí esse moleque chega na praia e vê iPod, Blackberry, menininha de quinze anos dando um dois, playboy de Tag Heuer no pulso, pittboy de Oakley na cara... e todo mundo filmando ele, que é preto. Ou mulato, ou pardo ou, simplesmente, fora do padrão dourado do local. "Pobre tem pinta de pobre". Onde eu ouvi isso? Adivinhem...

Tivesse eu nascido favelado, nem gosto de pensar em como seria lá pelos meus quinze anos de idade num lugar com gente que pensa assim.

E aí eu pergunto - é a porra da droga que faz o moleque virar bandido? Ou é a revolta que ele sente por viver fora daquilo, na realidade fodida de um morro, de um Complexo? Meus amigos, dêem graças a Deus por todo esse contingente estar agora em seus morros, esperando pra vender, botar na gaveta, descer pro baile e fechar o feriado santo sem tiro se possível. Porque o traficante quer as mesmas coisas que eu e você - da diversão na noite de sexta ao dinheiro no bolso pra pagar o leite das crianças. Porque traficante também tem filho.

E garanto - trafica porque não conseguiu nada digno pra fazer. Do mesmo jeito que cada camelô que vendeu uma cópia pirata do filme. Como disse o Mano Brown rispidamente no Roda Viva, "cê acha mesmo que o irmão iria tá lá no centro todo dia correndo da polícia se tivesse trabalho digno pra fazer?"

Só que não tem. Aí vai vender droga. Ou vai puxar carro. Vai assaltar banco, apartamento na Lagoa. Vai formar quadrilha pra sequestrar empresário da Barra que anda em carro de quinhentos mil reais. Quer saber? Eu acho mais é que quem tem a coragem e a falta de noção de andar num carro assim no nosso país tem mais é que tomar tiro na cara. Cara-de-pau.
É como passear num campo de refugiados no Máli comendo um sundae da Chaika. Afronta. Confronto.

No delicado equilíbrio de forças da nossa cidade, o confronto está cada vez mais presente. Um dia, o aparente estado de controle das coisas cai. Aí fodeu.

E, claro, vai tem gente dizendo que é por causa das drogas. Do mesmo jeito que, provavelmente, alguém vai ler isso aqui e achar que eu tô defendendo traficante ou tráfico. Porra, seu tonto, eles são consequência do que eu e você ajudamos a sustentar, uma sociedade fodida, partida, cada vez mais bipolar.

Porra, um dia a casa vai cair porque a tal bosta de elite continua comendo pizza de 50 reais, comprando vestido de 300, tênis de 500, carro de 60, 70, 100, 200... enquanto paga setentinha pra faxineira passar o dia inteiro em suas casas limpando... Não houvesse drogas ou tráfico, e a situação seria a mesma, pois a desigualdade e o ódio seriam os mesmos - sim, porque cada vez mais o pobre odeio o rico no Rio de Janeiro, e com motivo.

Pelo mesmo motivo que eu nem me arrisco a ver o filme de novo num cinema, sujeito a ouvir algum absurdo proferido por um sem-noção de merda qualquer perto de mim. Porque eu comprei um DVD pirata em Bonsucesso, botei quatro reais no bolso de um fodido que não conseguiu emprego decente mas que não tá roubando, tá correndo atrás do dele. Por mais chavão de moleque-de-bala-em-ônibus que isso possa ser. E cá entre nós, honestamente. Quem não usar soft pirata que atire a primeira pedra nele e em mim.

É pena que filme tão bom tenha tocado na questão das drogas, principalmente a maconha, através do ponto de vista pessoal do André Batista, co-autor do livro e fonte de inspiração pro Matias. Foi ele quem estudou na PUC e encarou aquelas situações. Que acontecem igualzinho, sem tirar nem pôr, na Unisuam, em Bonsucesso, na Gama Filho, em Pilares, no CIEP da Lagoa ou no de Vaz Lobo, no colégio mais tradicional ou mais bordel. Porque a venda e o consumo, ao contrário do que e elite míope pensa, são hoje intrínsecas à toda e qualquer socieadade, rica ou pobre, carioca ou européia. Fuma-se mais maconha no subúrbio, cheira-se mais coca na Zona Sul. É a única diferença mais perceptível. O consumo de drogas vai do ricaço aqui do lado ao trocador de ônibus que mora na Mangueira e rala pra caralho pra sustentar a família.

Não é a droga que fode nossa sociedade. São a desigualdade e a hipocrisia, que andam de mãos dadas no calçadão de Ipanema ou Leblon. Mesmo calçadão onde o rico desfila, o moleque do Nike se sente falsamente inserido... e onde o surfistinha compra a droga que quiser com o hippie das cangas.

Mas a culpa de toda essa merda é do maconheiro, claro.