segunda-feira, 14 de julho de 2008

Boi, boi, boi...

O homem dominou o fogo, inventou a roda, foi à Lua mas ainda não descobriu exatamente porque necessita de algumas horas de sono por dia. Alguns estudiosos defendem que o sono é necessário para a fixação de memórias. Outros afirmam ser uma simples pausa necessária para corpo e mente. O exército americano já gastou rios de dinheiro em pesquisas sobre o tema, na tentativa de criar um super-soldado que não precise dormir quando no campo de batalha. Mas tudo isso fica no campo da experimentação.

O que foi provado e comprovado é que o ser humano consegue viver mais tempo sem água ou comida do que sem sono. Cinco dias, é o limite máximo, dizem. Mais que isso e você morre, sim, por falta de sono.

Minha relação com cama e travesseiro nunca foi boa. Na tenra infância, tinha medo do escuro e de dormir sozinho. Mais tarde, superado isso, passei anos tendo um sonho repetido em que fugia de um lugar escuro e, quando achava a saída, tomava um tiro no peito - noites e noites acordando suado e aterrorizado. Num belo dia, noite, na verdade, o sonho parou e nunca mais veio. Já adulto, comecei a sofrer de insônia, maldição terrível que me atormenta até hoje, de tempos em tempos. Só depois dos trinta posso dizer que consegui aprender que pode haver até prazer no ato de dormir.

O problema é quando o mundo conspira pra que você não durma. E eu não estou me referindo à insônia.

* * *

"MENDONÇA, EDUARDO! MENDONÇA, EDUARDO!"

Eu ouvi a parte do "Eduardo", meu pai a do "Mendonça". Tínha acabado de fazer meu check-in e já pensava na tortura que seria ficar quase onze horas num avião, do Rio a Paris. Depois, ainda haveria mais cinco horas até Atenas.

"O senhor foi 'upgradado'. Só lhe peço para ser discreto."

Não sei se achei mais graça na palavra que a moça da Air France inventou, no pedido dela ou na cara de felicidade do meu pai. Fato é que, por conta de um erro da agência de viagens com as passagens do câmera que me acompanharia, fomos ambos parar na classe executiva. E logo da AF. "Viagem tranqüila", pensei. "De patrão".

Bem, de patrão foi mesmo. Bolsinha com mimos. Cardápio pra escolher. Álcool de todo tipo à vontade (foram cinco garrafinhas só de vinho branco). Queijinho brie. Sobremesa. Talheres de verdade. Uau. De patrão.

Agora, tranqüila, não foi. Apesar do espaço que parecia estúpido até o passageiro da frente e dos ajustes do banco (é, banco) que mais pareciam os de um carro de luxo, o fato é que a tal posição horizontal não me permitia esticar as pernas completamente. Se eu fosse uns dez centímetros mais baixo, seria lindo. Resultado - um cochilo ou outro nas onze horas de vôo, muito mais por conta do álcool que do espaço. Verdade que meu corpo chegou muito mais descansado a Paris do que se tivesse ido de classe econômica. Mas a falta de sono mata a mente, não o corpo.

* * *

"Foda-se, vou apagar no vôo para Atenas."

Fila 8F. Um, dois, trés... ai... ai... não pode ser sério. Ao meu lado, um menino de uns cinco anos e uma menina de uns dez. Na mesma fileira, do outro lado do corredor, os pais e outro garoto, pouco mais velho que o outro. E a menina ainda ocupava o meu lugar na janela. "Ok, uma criança, deve estar amarradona de viajar na janela, eu estaria." Gosto mais da janela, pois me apoio no avião pra tentar dormir. Apesar da vantagem de poder esticar pelo menos uma das pernas no corredor, sempre fico com medo de tombar pra cima da pessoa ao meu lado.

Meia hora depois da decolagem, a tragédia - a menina troca de lugar com o outro garotinho. E eu, morto de sono, certo de que estava prestes a apagar, passo a ser privilegiado espectador de uma farra entre dois Calvins franceses, com direito a voz alta, beliscões, socos e todo tipo de brincadeira típica dessa idade entre irmãos.

Os pais? Cagando. Para eles, para mim e para todos os outros passageiros, que olhavam a cada grito mais estridente ou choro. Porque, às vezes, os socos pareciam mesmo machucar.

Ligo o foda-se e penso em pegar o PSP. Desisto ao imaginar a possibilidade dos moleques me encherem ainda mais o saco pedindo pra ver ou jogar. Pior ainda seria se eu tivesse que trocar qualquer palavra com os pais, a quem já xingava há algum tempo. Tempo que não passa. Sono que mata. E barulho. Com sotaque francês. Puta que o pariu. Os nervos começam a aflorar. Péssimo isso. "Vou acabar perdendo a paciência", penso.

Bem, sempre pode ficar pior.

Chega a hora do almoço. E, para meu espanto, para minha estupefação, nenhum pai se mexe. Nada. Deixam que sirvam as bandejas para dois moleques de cinco e seis anos se virarem sozinhos num avião.

Na primeira, eu até ri. O mais velho tapou o nariz do mais novo e, quando esse abriu a boca, tascou-lhe um saquinho inteiro de sal goela abaixo. Quando o sal virou ketchup, comecei a me preocupar. Calça clara, camisa branca... "se esses moleques me sujarem, vou xingar muito esses filhos-da-puta desses pais." Nada acontece. Mas depois do ketchup, começa a guerra da manteiga. Nojento. Mas não me sujam, então fico quieto. Quieto e com sono até Atenas.

* * *

Poucas horas depois da chegada, já estou no ginásio, agitando credenciamento (que, como tudo o mais nessas viagens, apresenta pepinos que tenho que resolver). Já são umas 36 horas sem dormir. Olhos vermelhos pelo motivo errado. Pálpebra pesada. Eu quero cama, a qualquer custo.

Umas seis horas mais tarde, enquanto meu companheiro de quarto vai pro banho, eu finalmente caio na cama. Caio não, desabo. Apago imediatemente e nem o vejo sair do banho. Eram onze e meia da noite.

À meia-noite e vinte eu acordo. "Meu Deus, EU NUNCA VI NINGUÉM RONCAR ASSIM..." Nunca. E olha que, em Sydney, eu dividi quarto com um cara de um metro e noventa e cento e vinte quilos que conseguia roncar até de bruços. Aqui, o próprio roncador avisou antes, mas eu não levei fé. Tentei, em vão, até três e pouco da manhã, dormir. Tentei os tapa-ouvidos do avião... Tentei o iPod - que ficava baixo mesmo no volume mais alto diante do ronco dele... isso sem falar que o cara, muito gente fina, tem apnéia do sono, então não se trata apenas do volume mas também da forma do ronco - parece que ele vai se sufocar ou engasgar às vezes, uma coisa horrososa de irritante. Nervos testados durante três horas. "Meu Deus, serão mais seis noites, tô fodido..."

Às quatro da manhã eu me rendo. Pego o colchão e lençol e me tranco no banheiro, que, para minha sorte, é bastante grande pra isso. Mas, mesmo lá, mesmo com os protetores de ouvido, eu ainda ouvia o seu ronco ao longe... uma coisa impressionante.

Acordo às sete com ele tentando forçar a porta do banheiro, que não abre por conta do colchão alto. Claro, fica super constrangido quando explico a situação. Eu fico um pouco menos quando ele me conta que a ex-namorada dizia que, se um dia casassem, dormiriam em quartos separados. Foram só três horas de sono, depois de praticamente quarenta e duas acordado. Me sinto um caco, o último ser humano da terra. E parto para meu primeiro dia de trabalho, que iria durar das sete... às três da manhã do dia seguinte.

Penso nos experimentos do exército americano com soldados. Penso em espancar o primeiro grego que falar alto perto de mim. Penso em matar um panda ou qualquer outra coisa bela. Me irrito com qualquer coisa e comprovo na carne como o sono mexe muito mais com o sistema nervoso central que com a própria carne. Penso num banco de praça, com jornal quentinho... penso nos meus sábados em que durmo até meio-dia... e aí vejo que estou começando a parar de pensar. Penso que vou entrar em pane.

Abençoados os que dormem bem. Abençoados os que pegam no sono rápido. Abençoados todos os dorminhocos, coalas, gatos e prequiças do mundo. Mas, acima de tudo, que seja abençoada a alma boa que trocou de quarto e dormiu ontem na cama ao meu lado.

Sem roncar.